Em palestra na Associação Espírita Fé e Caridade, a expositora Patrícia Mendes trouxe um assunto de suma importância: o conhecimento de si mesmo. A Doutrina Espírita aborda tal tema em O Livro dos Espíritos, livro terceiro, capítulo 12, Lei de Perfeição Moral, questão 919.
Nessa questão, o codificador Allan Kardec inquire sobre “[…] o meio mais prático e eficaz para se melhorar nesta vida, e resistir ao arrastamento do mal?” Quem responde ao questionamento é o Espírito Santo Agostinho, que inicialmente remete a frase “Conhece-te a ti mesmo”, ao filósofo Sócrates.
Cabe ressaltar o que apontam Cláudio Sinoti e Irís Sinoti (2022), no último capítulo da obra Ao Encontro de Si Mesmo, em que lembram aos leitores que a frase “Conhece-te a ti mesmo”, embora atribuída a Sócrates, é uma frase escrita na fachada do Templo de Delfos (ou Templo de Apolo), na Grécia. Um oráculo em que as pessoas adentravam para consultar os deuses sobre seu futuro. Sócrates sabiamente atentou para a frase, compreendendo a necessidade de cada um voltar a si mesmo, em um processo de autoconhecimento.
O conhecimento de si mesmo
Certamente com base na sabedoria de Sócrates e no investimento dado pelo filósofo ao conhecimento, foi que Santo Agostinho o citou em O Livro Espíritos. Porém, Santo Agostinho afirma que compreendemos o valor da máxima Conhece-te a ti mesmo, mas há dificuldades para verdadeiramente nos conhecermos. Então qual seria o caminho ou meio de conseguirmos nos conhecer?
Santo Agostinho faz o seguinte convite:
Façam o que eu mesmo fazia na minha vida na Terra: ao fim da jornada, eu interrogava a minha consciência, revistando tudo que havia feito e me perguntava se não havia faltado com algum dever, se ninguém teve motivo para se queixar de mim. Foi assim que cheguei a me conhecer e a ver o que havia em mim para ser reformado. Aquele que a cada noite recordasse todas as suas ações do dia e indagasse a si mesmo o que fez de bem ou de mal, rogando a Deus e ao seu anjo da guarda para o esclarecer, este adquiriria uma grande força para se aperfeiçoar, porque — acreditem em mim — Deus o ajudaria. Portanto, façam perguntas, e se interroguem sobre o que fizeram e com que objetivo agiram em tal circunstância: se fizeram alguma coisa que vocês condenariam da parte de outrem; se fizeram um ato que não ousariam expor. Perguntem ainda mais isso: Se agradasse a Deus me chamar neste momento, será que eu teria que temer o olhar de alguém, ao reentrar no mundo dos Espíritos onde nada fica escondido? Examinem o que vocês puderam ter feito contra Deus, depois contra o próximo e, finalmente, contra vocês mesmos. As respostas serão ou um repouso para a vossa consciência, ou a indicação de um mal que precise ser curado. “O conhecimento de si mesmo é, portanto, a chave do melhoramento individual. Mas vocês dirão: como julgar a si mesmo? Não teríamos aí a ilusão do amor-próprio para suavizar as faltas e torná-las desculpáveis? O avarento se considera apenas econômico e previdente; o orgulhoso acha que têm apenas dignidade. Isto é bem verdade, mas vocês dispõem de um meio de verificação que não pode vos iludir: quando estiverem indecisos sobre o valor de uma de vossas ações, perguntem-se como vocês a qualificariam se tal ato fosse praticado por outra pessoa; se o condenariam nos outros. Esse ato não poderia ser mais legítimo em vocês, pois Deus não usa duas medidas para a justiça. Procurem também saber o que os seus semelhantes pensam disso e não desprezem a opinião dos inimigos, pois estes não têm nenhum interesse em mascarar a verdade, e Deus muitas vezes os coloca ao lado de vocês como um espelho para vos advertir com mais franqueza do que um amigo o faria. Que aquele que tenha o desejo sério de se melhorar então explore a sua consciência a fim de arrancar de si os maus pendores, bem como arranca as ervas daninhas do seu jardim; que ele faça o balancete da sua jornada moral como o comerciante faz o de suas perdas e seus lucros, e eu vos asseguro que o balancete moral lhe trará mais que o outro. Se puder se dizer que o seu dia foi bom, poderá dormir em paz e aguardar sem receio o despertar na outra vida […]
— O Livro dos Espíritos, livro terceiro, capítulo 12, questão 919, p. 407-408.
Compreendemos em O Livro dos Espíritos, com Santo Agostinho que o processo de conhecer-se a si mesmo, trata-se de um processo de autodescobrimento, que envolve a Reforma Íntima, ressaltada pela Doutrina Espírita.
Reforma íntima e hábitos mentais
Com a finalidade de explicitar o autodescobrimento, à luz da Psicologia Espírita de Joanna de Ângelis, Gelson L. Roberto, no capítulo intitulado Autodescobrimento, na obra Refletindo a Alma, aborda que “não há como avançarmos sem nos reconhecermos.”. E, para isso:
“[…] é importante termos sempre a consciência dos elementos que compõem o nosso ser – a mente. A mente é a própria manifestação do Espírito e é formada pelo pensamento, sentimento e vontade.”
— Refletindo a Alma, p.205.
Gelson Roberto (2011) alerta que a Reforma Íntima envolve a mudança de nossos hábitos mentais, a substituição de pensamentos negativos, por pensamentos voltados ao bem.
Obstáculos na reforma íntima
O autor elucida quatro entraves para que façamos a nossa Reforma Íntima. São eles:
- a literalização
- o materialismo,
- o egocentrismo,
- e o excesso de subjetividade.
O materialismo com sua visão literal da vida, cria uma rede de falsos valores que aprisiona a alma em um beco sem saída, na ideia de uma finitude vazia (p.210).
No excesso de subjetividade encontramos o eu metido em tudo, como se fosse o centro absoluto do processo, desse modo, tiramos o foco dos reais valores da vida e trazemos todos os acontecimentos para as nossas necessidades subjetivas; centramos a realidade em nossas impressões individuais. “O EU ENGOLE TUDO” (p.210).
Prossegue Gelson ressaltando que precisamos ter consciência da nossa realidade espiritual e consciência de que somos espíritos eternos, para darmos a cada coisa o seu devido valor, diminuindo nosso EGO, centrando no SELF (si mesmo) na unidade com o Pai Celestial.
Emoções e sentimentos
Para melhor nos conhecermos, também precisamos observar e conhecer as nossas emoções e os nossos sentimentos.
No Capítulo 9, da obra Refletindo a Alma, organizada pelo Núcleo de Estudos Psicológicos Joanna de Ângelis, Gelson Roberto e Marlon Reikdal (2011) escrevem sobre EMOÇÕES E SENTIMENTOS: UMA COMPREENSÃO PSICOLÓGICA ESPÍRITA. Alegam os autores que:
[…] emoções e os sentimentos apresentam um universo rico e instigante para todo aquele que deseja se conhecer e se transformar para melhor
— Refletindo a Alma, capítulo 9, p.219.
- É preciso saber identificar as emoções autênticas.
- É preciso diferenciar as emoções dos sentimentos.
- É preciso reeducar emoções e sentimentos.
Assim como, é preciso não temer as emoções para que possamos com honestidade e vontade bem direcionada, investir em nosso crescimento espiritual, certos da misericórdia Divina a nos auxiliar nesse processo.
Lembrando que:
somos frutos do amor, e vivendo no amor de Deus fomos feitos para amar. Amar-se é encontrar-se […] é buscar o entendimento objetivo de nossa realidade, termos a consciência de nossa condição espiritual e da capacidade de nossa mente.
— Refletindo a Alma, p. 2013.
Acompanhe também o áudio da palestra:
Referências:
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Salvador Gentili. Araras, SP, IDE, 171ª edição, 2008.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Ery Lopes. Portal Luz Espírita, 2024.
REIKDAL, Marlon; Gelson L. Roberto. Emoções e Sentimentos: uma compreensão psicológica espírita. IN: MANSÃO DO CAMINHO. NÚCLEO DE ESTUDOS PSICOLÓGICOS JOANNA DE ÂNGELIS. Refletindo a alma: a psicologia espírita de Joanna de Ângelis. Salvador, BA; Livraria Espírita Alvorada Editora, 2011.
ROBERTO, Gelson L. Autodescobrimento IN: MANSÃO DO CAMINHO. NÚCLEO DE ESTUDOS PSICOLÓGICOS JOANNA DE ÂNGELIS. Refletindo a alma: a psicologia espírita de Joanna de Ângelis. Salvador, BA; Livraria Espírita Alvorada Editora, 2011.
SINOTI, Cláudio; SINOTI, Íris. Ao Encontro de Si Mesmo: Reflexões sobre o ser humano e os desafios existenciais. São Paulo, SP, Intelitera, 2022.
* Colaborou para esta publicação: Patricia Mendes.
** Imagem em destaque via Pixabay.com.