Vivemos um período identificado pela espiritualidade como de transição planetária, estamos passando por uma pandemia global e acabamos de entrar em mais um ciclo novo no calendário, é mais um ano que se inicia. São muitos os convites para a auto-observação. Como temos passado por este período? Nos encontramos na ação, transformando a nós mesmos e o mundo a nosso redor? Temos reservado tempo para a reflexão e a meditação?
Uma passagem evangélica que colabora com essa identificação sobre como tem vibrado nosso íntimo é encontrada em Lucas, no final do capítulo 10. Nesse trecho é narrada a visita de Jesus às irmãs Marta e Maria. Em palestra transmitida pelos canais digitais da Associação Espírita Fé e Caridade propomos um estudo sobre o ensinamento deixado pelo Mestre nessa passagem.
JESUS VISITA MARTA E MARIA
Ao prosseguirem {a jornada}, ele entrou em certa aldeia. E certa mulher, de nome Marta, o hospedou.
Ela tinha uma irmã, chamada Maria, que estava sentada aos pés do Senhor, e ouvia a sua palavra.
Marta distraia-se em torno de muito serviço. Colocando-se perto, disse: Senhor, não te importas que minha irmã me deixe servir sozinha? Dize-lhe, pois, que me ajude.
Em resposta, o Senhor lhe disse: Marta, Marta, inquieta-te e te agitas a respeito de muitas {coisas}.
Porém é necessária uma. Assim, Maria escolheu a boa parte, que não será tirada dela.
— Lucas 10:38-42 (tradução de Haroldo Dutra).
Certa aldeia
Importante buscarmos o contexto histórico de qualquer passagem do evangelho que queiramos estudar. Conhecer o local em que se passou a cena dá pistas sobre as personagens e pode fazer reverberar em nós o que viram e sentiram em dada ocasião, ampliando nosso campo de visão e nossa compreensão. Nesse trecho do evangelho, Jesus se encontra na cidade de Betania.
Lucas escreve que estavam em jornada e apresenta Betania como “certa aldeia”. Aferimos tratar-se da cidade por ser residência de Marta, o que está explícito no texto. Veremos a seguir que Marta é a irmã de Lázaro apontada em João 11:1: “estava, então, enfermo um certo Lázaro, de Betânia, aldeia de Maria e de sua irmã Marta”. Em sua tradução da bíblia Haroldo Dutra esclarece que Jesus e os discípulos estavam “em viagem para Jerusalém, conforme anunciado em Lc 9:51-53”.
Originalmente uma aldeia da Judeia, Betânia está localizada a cerca de 3km a leste da Cidade Velha de Jerusalém e do Monte das Oliveiras. É mencionada diversas vezes no Novo Testamento, como um local visitado por Jesus Cristo.
Amélia Rodrigues, através da psicografia de Divaldo Franco, apresenta no livro Primícias do Reino a cidade de Betânia como um verdadeiro oásis no caminho à agitada Jerusalém, que era o destino de Jesus naquela viagem.
Tudo ali era bucolismo: tapetes de flores miúdas caíam sobre a relva verdejante, e a coroa do Monte das Oliveiras, ao longe, tingia com o verde-cinza das árvores a paisagem deslumbrante. Os declives cheios de folhagens exibiam casas brancas de alpendres floridos. Próxima à capital ficava, no entanto, muito longe em comparação ao fausto e à bulha da grande cidade.
— Amélia Rodrigues em Primícias do Reino, capítulo 16, “A família de Betânia”.
Quem eram Marta e Maria
Nesta bela e tranquila cidade viviam Marta e Maria. Irmãs, e portanto, indissociáveis. Recebem a bênção da visita de Jesus na intimidade do lar, oportunidade em que manifestam entusiasmo pela presença do Mestre, na forma que lhes é própria, consoante o temperamento, necessidades e entendimento espirituais.
No capítulo 15 do livro Da Manjedoura a Emaús, Wesley Caldeira destaca a visão que Jesus tinha das mulheres num geral, bastante original para a época.
Em seu anseio salvador, Jesus identificou, destacou e valorizou os imensos recursos da alma feminina. Ele não propunha que a mulher tradicional do mediterrâneo fugisse aos compromissos dos deveres domésticos, mas convocou-a, simultaneamente, à construção do novo tempo social e espiritual. (…) Para as mulheres, o Evangelho constituía um hino de liberdade, malgrado o clima desfavorável que se respirava, mesmo dentro das comunidades cristãs, não totalmente integradas ao espírito do Cristo quanto ao valor da mulher.
— Da Manjedoura a Emaús, capítulo 15, “As discípulas”.
Conheçamos um pouco mais portanto sobre essas duas mulheres amigas de Jesus.
Marta
No Dicionário Bíblico, Marta significa senhora. É irmã de Lázaro e de Maria. Marta é sempre mencionada antes de Maria, provavelmente por ela ser a irmã mais velha (Lc 10 – Jo 11). Era a dona daquela casa, na vila de Betânia, onde Jesus se hospedava.
Jesus os visitava freqüentemente, quando estava em Jerusalém (Lc 10:38). De fato, esteve com eles na semana antes de ser preso e crucificado (Mt 21:17). Suas atitudes revelavam sua lealdade para com o Senhor Jesus.Seu caráter sincero é demonstrado por sua fé honesta e firme.
Quando seu irmão ficou gravemente enfermo, ela e a irmã enviaram uma mensagem a Cristo, para que viesse à casa deles com urgência (Jo 11:3). Jesus, entretanto, não atendeu de imediato ao pedido e Lázaro morreu (vv. 6-15). Quando o Senhor finalmente chegou a Betânia, Marta foi honesta com Ele, ao dizer-lhe que, se tivesse vindo imediatamente, seu irmão estaria vivo; mas também exercitou uma fé extraordinária, ao identificar Cristo como o Filho de Deus e crer que Ele tinha grande poder (vv. 21-27). Jesus honrou sua fé e ressuscitou Lázaro, a fim de manifestar desta maneira a glória de Deus (38-44).
Marta era portanto uma seguidora leal de Jesus, cria nele e o servia com devoção e zelo.
Maria
Importante esclarecer que a irmã de Marta, Maria, não é Maria de Magdala ou a mãe de Jesus — são muitas as Marias no evangelho. Mas é a mesma Maria citada ao lado de Marta no episódio da ressurreição de Lázaro e mais tarde, em um jantar foi oferecido em homenagem a Cristo. Na ocasião Marta O servia e Lázaro estava à mesa com Jesus.
Então Maria, tomando uma litra de unguento de nardo puro, caro, ungiu os pés de Jesus e enxugou com os seus cabelos os pés dele.
A casa encheu-se do aroma do unguento.
— João 12:3 (tradução de Haroldo Dutra).
Esse perfume em tese custaria 300 denários, o salário de um ano inteiro de um homem do campo, e Judas Iscariotes critica o desperdício de dinheiro. Mas Jesus calmamente recebeu o gesto de bondade e o identificou como um sinal de sua morte iminente na cruz, quando seu corpo seria ungido com perfumes e colocado no túmulo.
Maria é descrita na Bíblia como uma mulher muito dedicada ao ministério de Jesus, amigo muito chegado de sua família. Era também uma discípula com uma profunda fé no Senhor. É vista como uma ouvinte atenta dos ensinos de Cristo e que se prostrou a seus pés em adoração, em duas ocasiões. Jesus afirmou que seu ensino e trabalho eram dirigidos a pessoas como Maria, que criam e confiavam nele.
Distração, inquietação e agito
Agora que conhecemos um pouco mais sobre essas duas personagens, podemos começar a traçar ideias de comparação. Pensamos: sinto-me mais como Marta ou como Maria? É necessário um pouco mais de reflexão sobre a passagem para vermos que ambos os arquétipos convivem em nós, não são contraditórios como uma análise superficial indicaria.
Observemos que Marta está focada em uma tarefa de grande importância: hospedar o Mestre. Hospitalidade era uma prática levada a sério na tradição judaica. Receber Jesus, portanto, pode ser visto como uma grande responsabilidade. Podemos questionar: o que precisamos para receber Jesus em nossas casas? Precisamos estar com tudo pronto e resolvido? Ou devemos ir modificando e melhorando a casa uma vez que Jesus entre nela? Aqui tratamos não da casa física, mas de nossa casa mental e de nossos corações.
Para Jesus, basta que abramos a porta, que sejamos receptivos. Uma vez a mensagem de Jesus em nossa casa, o preparo se dará.
Marta abre a porta, recebe Jesus, mas logo se ocupa com afazeres mundanos. Está focada na hospedagem temporária e não em garantir que a mensagem do Mestre para sempre habite seu coração.
Vemos na passagem evangélica que Jesus não repreende Marta quanto a suas tarefas, mas ressalta como ela se sente. Chama atenção à agitação, à inquietação dela. O trabalho em si é digno e necessário. Mas a qualidade do trabalho, o estado mental da discípula é o que o Mestre destaca.
Essa distinção entre diferentes formas de trabalhar é tema de mensagem de Emmanuel na obra Pensamento e Vida, psicografada por Francisco Candido Xavier.
Não vale, contudo, agir por agir.
As regiões infernais vibram repletas de movimento.
Além do trabalho-obrigação que nos remunera de pronto, é necessário nos atenhamos ao prazer de servir.
O trabalho-ação transforma o ambiente.
O trabalho-serviço transforma o homem.
— Emmanuel em Pensamento e Vida, capítulo 7, “Trabalho”.
Quando perdemos a conexão entre a ação e o serviço, o servir, e o benefício gerado pelo trabalho que fazemos é que nos extenuamos, nos exaurimos, ficamos como Marta: agitados, inquietos, ansiosos, com imensa sensação de vazio, que por vezes procuramos preencher com mais atividades, mais agito.
O que nos coloca nesse lugar muitas vezes pode ser o apego material excessivo, por vaidade ou ganância, invigilância, hábitos antigos arraigados, ou mesmo questões emocionais. Luto, culpa, arrependimento podem nos fazer querer fugir de nós mesmos ou de uma situação, nos entregando a atividades vazias por vezes para escapar de esforços que consideramos mais difíceis, que levam a encararmos mágoas e efetivamente operar mudanças em nossa forma de pensar e sentir. Entregues ao trabalho-ação desenfreado corremos risco de nos perder e adoecer, moral e fisicamente.
Como alerta Vinícius no livro Nas Pegadas do Mestre:
Os homens do século vivem aflitos e afadigados com mil preocupações, que os enervam, quando, em verdade, como assevera o Mestre, poucas coisas são necessárias.
As inúmeras necessidades que fazem o flagelo da maioria dos homens são fictícias, puros caprichos criados pelas paixões desenfreadas, pelos vícios e taras mórbidas, que se adquirem por imitação e se alimentam por egoísmo.
— Nas Pegadas do Mestre, capítulo 112.
Cabe nessa hora fazer como a própria Marta, procurar Jesus. Buscar nos conectar com o alto. Acessar a energia do andar mais alto de nossa mente, como descreve o instrutor Calderaro a André Luiz no livro No Mundo Maior.
[ver o cérebro] como se fora um castelo de três andares: no primeiro situamos a “residência de nossos impulsos automáticos”, simbolizando o sumário vivo dos serviços realizados; no segundo localizamos o “domicílio das conquistas atuais”, onde se erguem e se consolidam as qualidades nobres que estamos edificando; no terceiro, temos a “casa das noções superiores”, indicando as eminências que nos cumpre atingir.
Num deles moram o hábito e o automatismo; no outro residem o esforço e a vontade; e no último demoram o ideal e a meta superior a ser alcançada. Distribuímos, deste modo, nos três andares, o subconsciente, o consciente e o superconsciente.
— No Mundo Maior, capítulo 3.
É saudável e bem-vinda a atitude de Marta levada à ação, precisamos do esforço e da vontade para operar no mundo e trabalhar em benefício de nós mesmos e do próximo. Mas, como disse Jesus a Marta, “uma coisa é necessária”.
Uma coisa é necessária
Como vimos, Marta recorre a Jesus. Vemos em Primícias do Reino, uma continuação da passagem evangélica em que Marta humildemente se desculpa por seu comportamento e ouve a lição do Mestre.
— Desculpa-me — justificou-se Marta, — são os velhos hábitos muito arraigados.
— Para atingir a plenitude — acrescentou o Amigo — só uma coisa basta: espírito de luta capaz de arrebentar as velhas algemas e, renovado, entregar-se, totalmente, às coisas do Pai Celeste.
— Amélia Rodrigues em Primícias do Reino, capítulo 16.
A sintonia com Deus é a coisa necessária, em tudo que façamos. Sem ela, o trabalho não terá utilidade. A intenção de evoluir, de nos aproximarmos do Criador deve estar em todas as atividades, especialmente no caráter emocional. A distinção de espírito e matéria por vezes nos confunde. Ao agirmos no mundo material estamos sempre agindo como espíritos. Em tudo que façamos, lembremos dessa verdade. As ações mais singelas, como a organização da casa para receber um hóspede, podem ser feitas com nossos corações voltados ao Senhor, ou fechados nos automatismos da ação sem propósito.
Conforme Emmanuel, precisamos focar nessa sintonia para agir com proveito e internalizar a mensagem de Jesus em nossos corações:
“Uma só coisa é necessária”, asseverou o Mestre, em sua lição a Marta, cooperadora dedicada e ativa.
Jesus desejava dizer que, acima de tudo, compete-nos guardar, dentro de nós mesmos, uma atitude adequada, ante os desígnios do Todo-Poderoso, avançando, segundo o roteiro que nos traçou a Divina Lei. Realizado esse “necessário”, cada acontecimento, cada pessoa e cada coisa se ajustarão, a nossos olhos, no lugar que lhes é próprio.
Sem essa posição espiritual de sintonia com o Celeste Instrutor, é muito difícil agir alguém com proveito.
— Vinha de Luz, capítulo 3.
A boa parte
Precisamos, portanto, viver o Cristo para que o Cristo viva em nós, como disse Paulo em Gálatas 2:20. Essa sintonia ocorre quando temos a perfeita junção de Marta e Maria, a ação e a contemplação — não isoladas, mas atuando juntas. É o trabalho em sintonia com a vontade de Deus, de coração enobrecido, sem excessos, mas com as pausas reflexivas, necessárias ao abastecimento da criatura pela luz divina.
Não é apenas o trabalho e a ação, sem prece, sem conexão com o alto. Também não é apenas a contemplação e meditação, sem ação no bem, o que configura egoísmo.
Ainda conforme Emmanuel:
A tempestade da hora em que vivemos é, muitas vezes, a fonte do bem-estar das horas que vamos viver.
Busquemos o lado melhor das situações, dos acontecimentos e das pessoas.
“Maria escolheu a boa parte, que não lhe será tirada” — disse-nos o Senhor.
Assimilemos a essência da divina lição.
Quem procura a “boa parte” e nela se detém, recolhe no campo da vida o tesouro espiritual que jamais lhe será roubado.
— Fonte Viva, capítulo 27.
Essa interceção entre Marta e Maria foi representada em gráfico em estudo do Grupo NEPE Maria de Nazaré, de Lavras, em Minas Gerais, que reproduzimos abaixo.
De um lado a vida ativa, Marta. Do outro, a vida contemplativa, representada na passagem por Maria. A primeira seria movimento dissociado de significado. A segunda, contemplação dissociada de ação. Uma não é produtiva sem a presença da outra, ambas agregam à outra utilidade. A ação precisa abastecer-se do movimento da alma, como a contemplação demanda agregar trabalho. No centro, o equilíbrio desses dois arquétipos, dessas forças naturais, que vivem em nós e são complementares.
A conquista do equilíbrio demanda paciência, persistência e resiliência. Não se dará de uma hora para outra. Mas o resultado é eterno, como nos conta Vinícius ao final do capítulo 112 de Nas Pegadas do Mestre.
A necessidade real é, rigorosamente, uma só: evolver, caminhar na senda da perfeição, que é o senso da vida. “Buscai em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo. ” Assim ensinou o maior idealista que passou peta Terra.
Em tal importa a boa parte.
Felizes os que a escolheram, pois não lhes será tirada, isto é, poderão transporta-la alem do túmulo. É um sonho? É uma ilusão? Que importa?
Há sonhos que se transformam em realidades, e ha realidades que se transformam em sonhos.
Os bens e os prazeres mundanos são realidades do momento que se tornarão em pesadelos no futuro.
A revelação do Céu, essa água viva que Maria sorvia embevecida aos pés do Senhor, será quimera e loucura para as gentes, mas que se há-de tornar em realidade no próximo porvir que nos espera.
— Nas Pegadas do Mestre, capítulo 112.
Busquemos sempre a água viva da revelação trazida pelo Cristo. E finalizamos, assim, com as palavras de Jesus a Marta, conforme consta em Primícias do Reino:
— O pão, o agasalho — esclareceu Jesus — a terra no-los dá. O céu estrelado é cobertor excelente e o solo gentil é celeiro sagrado.
A palavra, no entanto, é semente de vida.
As preocupações sobre as coisas imediatas caracterizam a horizontalidade em que muitos se perdem, perturbados pela própria azáfama na luta em que se embrenham.
A busca incessante da verdade, em permuta entre as coisas múltiplas pela aquisição de uma só paz interior com segurança espiritual, eis a vertical libertadora.
— Primícias do Reino, capítulo 16.
Acompanhe agora a íntegra da palestra que inspirou esta publicação:
*Colaborou para esta publicação: Emilia Chagas.