Para que possamos ter compreensão do que significa os “160 Anos do Auto-de-fé de Barcelona”, precisamos voltar no tempo. E, além disso, entender que as mudanças necessárias para a renovação da humanidade se fazem, por vezes, através de caminhos tumultuados, mas que os fins justificam os meios utilizados.
Uma ideia nova nem sempre é aceita facilmente. Muitas vezes, é rejeitada, seja por orgulho, vaidade, acomodação ou ainda, por estarem as pessoas arraigadas a ideias pré concebidas que são favoráveis a poucos privilegiados.
Toda ideia nova forçosamente encontra oposição e nenhuma há que se implante sem lutas. Ora, nesses casos, a resistência é sempre proporcional à importância dos resultados previstos, porque, quanto maior ela é, tanto mais numerosos são os interesses que fere.
— O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XXIII, ítem 12.
O advento da doutrina espírita não se estabeleceu pacificamente. Os antagonistas, levados por paixões vibrantes, como o orgulho e o egoísmo, se manifestaram. Mas, tudo aconteceu no momento certo, embora fosse algo novo, incomum.
Jesus declarou:
Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisa e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito
— João 14:26.
O consolador prometido
Os primeiros sinais da revelação espírita, antes do lançamento de O Livro dos Espíritos, foram as mesas girantes; movimentos e suspensões; ruídos, barulhos e perturbações; aumento e diminuição de peso dos corpos; lançamentos de objetos; fenômeno dos transportes.
Quando dizemos que alguns efeitos foram alguns dos primeiros a serem observados, queremos nos referir a estes últimos tempos, porque é bem certo que todos os gêneros de manifestações foram conhecidos desde os tempos mais recuados.
— O Livro dos Médiuns, cap. II, ítem 60.
Os fenômenos espíritas, inicialmente, eram vistos, por muitos, como diversão ou passatempo.
Em Paris, a igreja tradicional começou a questionar esses fenômenos e suas manifestações e o que estava acontecendo era considerado heresia (sacrilégio, pecado, insulto). O vigário geral do arcebispado de Paris ameaçou providências sérias em relação a tais absurdos.
E assim começa a luta do espiritismo através desses fenômenos, para chamar a atenção para a revelação que viria.
Entrou em cena, então, Hippolyte Léon Denizard Rivail, estudioso e educador, que, em 1852, iniciou suas experiências com o mundo da espiritualidade. Investigou fenômenos espíritas em vários países, tomou conhecimento das mesas girantes e da escrita mediúnica, fenômeno que mais tarde testemunharia. Passou a se comunicar com os espíritos, questionando, observando, comparando, utilizando o método científico.
Com suas pesquisas, tirou o véu da obscuridade e falou sobre os espíritos que já passaram pela terra e deixaram ensinamentos básicos, como Sócrates, Platão, São Paulo, São Vicente de Paula, Santo Agostinho e muitos outros. Kardec demonstrou que os fatos falsamente qualificados como sobrenaturais estão submetidos a leis. Ele os fez entrar na ordem dos fenômenos da natureza e destruiu assim o maravilhoso e a superstição.
Através do contato com espíritos amigos e de luz, aprofundou suas pesquisas e começou a escrever, para que hoje possamos ter essa vasta e maravilhosa obra e agradecer e prestar reconhecimento eterno, já que os livros que deixou são nossos companheiros diários e auxílio em nossa jornada de autotransformação para o bem.
O pseudônimo, Allan Kardec
Em 18 de abril de 1857 foi lançado O Livro dos Espíritos. No momento de publicá-lo, o autor ficou muito embaraçado em resolver como o assinaria. Adotou o pseudônimo de Allan Kardec, nome que, segundo lhe revelara um guia espiritual, ele tivera em uma encarnação anterior, ao tempo dos druidas.
O livro foi um abalo nas relações sociais e crenças. A primeira edição esgotou em dois meses. As críticas eram muitas, mas o autor foi advertido pelos espíritos para manter a confiança. Era o início dessa jornada e a natureza humana não se modificaria rapidamente.
O autor, com auxílio de seus guias espirituais, publica o primeiro número da Revista Espírita, que saiu às ruas em 01 de janeiro de 1858 e em menos de um ano estava espalhada por todos os continentes do globo. Trazia informações importantes para os adeptos, buscando assentar as bases de um bom e durável êxito e, com isso, movimentou muitas críticas por parte de religiões tradicionais e de detentores do poder nessa época. Então, já em 1860, é lançada a segunda edição de O Livro dos Espíritos e, em janeiro de 1861, O Livro dos Médiuns.
Em relação aos livros escritos por Allan Kardec, sua esposa Amélie Gabrielle Boudet respondeu em uma entrevista: “todos os livros de meu marido foram criados por ele, com a ajuda de médiuns e evocações”. (Biografia de Allan Kardec – FEB).
As informações descritas até aqui, são necessárias para entendermos o acontecimento do dia 9 de outubro de 1861 e, principalmente, para que possamos reconhecer que tudo o que acontece na obra de Deus tem um motivo determinado, mesmo que o resultado venha em longo prazo.
O auto de fé de Barcelona
Os acontecimentos preliminares que levaram ao ato de 1861 em Barcelona demonstram que algo estava mudando. Em 1789, Paris era a capital intelectual do mundo e começa então um ciclo revolucionário que traria grandes transformações sociais e, consequentemente, em todas as outras áreas. Alguns cientistas buscavam explicação para as ocorrências espíritas e tinham a opinião de que deveriam buscar ideias novas. Já outros tinham sérias objeções a qualquer reforma.
Maurice Lachâtre era um francês que fora exilado na Espanha, mais precisamente em Barcelona e era amigo pessoal de Allan Kardec. Lachâtre era um homem de vanguarda, defensor da liberdade de expressão e oriundo dos ideais iluministas franceses. Era escritor e editor e havia estabelecido em Barcelona uma livraria. Acompanhava a efervescência cultural da época e estava muito bem informado sobre os fenômenos mediúnicos, bem como o Espiritismo propriamente dito.
Lachâtre solicitou a Kardec o fornecimento de aproximadamente 300 livros espíritas, para vendê-los na Espanha. Allan Kardec enviou obras relevantes, como O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O que é o Espiritismo e volumes da Revista Espírita, livros codificados pelo próprio Kardec, juntamente com livros importantes relacionados ao Espiritismo, como, por exemplo, A História de Jeanne D’Àrc, Cartas de um católico sobre o Espiritismo, A realidade dos Espíritos demonstrada pela escrita direta, entre outros.
Todas as tarifas alfandegárias já tinham sido devidamente pagas. De fato, como explica Allan Kardec em Obras Póstumas:
Chegados os livros, cobraram-se do destinatário os direitos de importação, mas antes de lhos entregarem, tiveram de deferir o despacho ao bispo, autoridade eclesiástica que, na Espanha, tem a fiscalização dos livros. Achava-se este em Madri, mas na sua volta, em vista do catálogo, ordenou que aquelas obras fossem apreendidas e queimadas na praça pública pelo carrasco.
— Obras Póstumas, Segunda Parte.
O bispo Dom Antonio de Palau Y Termens era um homem culto, intelectualizado, autor de obras católicas. Quando leu os títulos das obras espíritas, mandou queimar todos os livros, afirmando: “A Igreja Católica é universal e o governo não pode consentir que os livros venham a perverter a moral”.
Lachâtre sugeriu, então, que os livros fossem devolvidos ao remetente na França, no caso, Allan Kardec. O bispo respondeu a essa solicitação de forma negativa.
No dia Nove de Outubro de 1861, então, na Esplanada de Barcelona, às 10:30 da manhã, as obras foram rasgadas e queimadas em praça pública. Consta que a queima foi executada perante uma multidão.
Algumas pessoas conseguiram resgatar alguns fragmentos de algumas obras. Kardec usa pela primeira vez a expressão “Auto-de-fé de Barcelona” para designar esse episódio, na edição de novembro de 1861 da “Revista Espírita”.
Este ato foi um marco e, na França, causou incredulidade. Mas, como nos informa o livro Obras Póstumas:
Fazia-se mister alguma coisa que chocasse com violência certos espíritos encarnados, para que se decidissem a ocupar-se com essa grande doutrina, que há de regenerar o mundo. Nada, para isto, se faz inutilmente na terra, e nós, que inspiramos o Auto-de-fé de Barcelona, sabíamos que, procedendo assim, forçávamos um grande passo para frente. Esse fato brutal, inaudito nos tempos atuais, se consumou tendo por fim chamar a atenção dos jornalistas que se mantinham indiferentes diante da agitação profunda que abalava as cidades e os centros espíritas.
As notícias se espalharam e a curiosidade, associada, é claro, à necessidade de evolução de uma época, trouxeram resultados benéficos, exaltando a importância do Espiritismo. E, como está em O Evangelho Segundo o Espiritismo:
O Espiritismo vem realizar, na época prevista, as promessas do Cristo. Entretanto, não o pode fazer sem destruir os abusos.
— O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XXIII, ítem 17.
Muitas lutas ocorreram para que a Doutrina Espírita e as obras codificadas por Kardec pudessem realizar as promessas de Jesus. Agora, o mundo conhece, pratica e propaga os ensinamentos espíritas de amor, fé e caridade. Que tenhamos coragem para continuar a luta contra o egoísmo, o orgulho, a ambição e tudo o que nos impede de progredir como espíritos eternos que somos. Que assim seja!
Referências:
– FEB, Biografia de Allan Kardec, 21/06/2012.
– KARDEC, Allan; O Livro dos Médiuns, Cap. II, ítem 60.
– KARDEC, ALLAN; O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XXIII, ítens 12, 16 e 17.
– KARDEC, Allan; Obras Póstumas, Segunda Parte, 16:46.
– O CONSOLADOR ; Revista semanal, artigo de 07/07/2013, São João Del Rei, MG-BRASIL.
– Revista Espírita (novembro de 1861).
Acompanhe agora a íntegra da palestra que inspirou esta publicação:
* Colaborou para esta publicação: Susana Rodrigues.
** Imagem em destaque via Pexels.com